Ainda jovem, a sateré-mawé Clarinda Ramos deixou a sua aldeia, no rio Andirá, para estudar na cidade de Barreirinha (AM). Sofreu com comen...
Ainda jovem, a sateré-mawé Clarinda Ramos deixou a sua aldeia, no rio Andirá, para estudar na cidade de Barreirinha (AM). Sofreu com comentários preconceituosos, entre os quais contra o costume de comer formiga. Décadas depois, ela coordena a cozinha do Biatüwi, o primeiro restaurante indígena de Manaus.
“Quando saímos da comunidade, não temos a noção de que o contato com o não indígena pode trazer um desequilíbrio. Acabamos deixando o que praticamos na aldeia. Hoje, entendo que é por causa do racismo e tenho argumentos. E a cozinha é uma reconstrução de tudo isso que deixamos de fazer. É emocionante”, afirma Ramos, 52.
De terça a domingo, ela e sua equipe preparam centenas de formigas maniwaras e saúvas para os clientes, quase todos não indígenas. Levadas à mesa em cuias, elas acompanham a quinhapira, caldo de peixe com tucupi e pimenta, alimento tradicional dos povos habitantes do rio Negro.
Também servido em uma cuia, o caldo é o carro-chefe do Biatüwi, que significa “casa da quinhapira” na língua tucano, povo que habita o Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas.
“A pimenta é o ingrediente principal”, explica o antropólogo tucano João Paulo Barreto. Marido de Ramos, ele coordena o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi’i, que funciona no mesmo local.
“A pimenta era usada pelos demiurgos (deuses) com a função de limpar a contaminação dos alimentos e transformá-los em fontes proteicas, seja de peixe ou de carne de caça. Era também usado para limpar seus corpos e proteger-se das doenças, afastar a preguiça e sonolência e manter a memória e o apetite sexual ativados”, completa.
O centro de medicina e a casa de comida indígena —como Barreto prefere chamar— estão abrigados em um amplo e bem conservado casarão antigo na rua Bernardo Ramos, de calçamento de pedra, amplas calçadas, arborizada e com fiação enterrada. Um oásis de urbanismo e silêncio no caótico e descuidado centro manauara.
A decoração é minimalista, mas cheia de história. No teto, há lustres trançados em arumã (tipo de palha) por artesãos do povo baniwa. Os talheres são embalados em folhas, dispostos sobre esteiras com grafismo indígena. Para apoiar a cuia, uma base de sementes de tucumã, espécie de palmeira. Nos cantos, prateleiras com peças de artesanato e medicina tradicional, para venda.
A maior parte dos ingredientes, incluindo a pimenta e as formigas, é trazida do rio Tiquié, no Alto Rio Negro, onde Barreto nasceu. Para chegar até São Gabriel, são até quatro dias de rabeta (barco de baixa potência).
É preciso descarregar e carregar três vezes para atravessar corredeiras. Na cidade, são despachados em barcos maiores. E mais três dias de viagem até Manaus.
De todos os ingredientes, o mais delicado é o japurá, preparado na comunidade São Domingo Sálvio, onde Barreto nasceu. É preciso colher a fruta no igapó (floresta inundada), pilar a polpa, colocar a massa em um tubo de palha e enterrar na terra por dois a três meses. Com um detalhe crucial, confidencia Barreto: “A pessoa que está cuidando do processo não pode soltar gás”.
O tempero é usado na mujeca (wai pêke, em tucano), o único outro prato oferecido no cardápio além da quinhapira, que tem uma versão vegetariana com batata roxa e cará roxo.
Quanto às bebidas, as opções incluem o aluá, fermentado de abacaxi, e o xibé, uma mistura de farinha com açaí, buriti ou bacaba.
Há também o guaraná natural raspado na língua de pirarucu, representante no cardápio do povo sateré-mawé, que habita o Baixo Rio Amazonas, a centenas de quilômetros de São Gabriel da Cachoeira.
O restaurante é um sonho antigo do casal e de outros indígenas que gravitam em torno do centro de medicina. Em um passado recente, eles ofereciam a comida tradicional uma vez por mês, em almoços.
Mas o projeto só ganhou forma no ano passado, graças a uma parceria com o badalado restaurante Caxiri, da chef Debora Shornik. Durante meses, os indígenas assumiram a cozinha aos sábados à noite para preparar a quinhapira, enquanto aprendiam sobre como gerenciar o negócio.
Ao mesmo tempo, Shornik e seu sócio, o empresário paulista Ruy Tone, mobilizaram uma campanha de doações para equipar a cozinha do Biatüwi. Com tudo pronto, o espaço foi inaugurado em 14 de novembro.
Coordenadora da cozinha, formada em pedagogia e na reta final de um mestrado em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, Ramos considera a abertura do Biatüwi mais uma etapa vencida. “O período de preconceito está superado. Não me arrepia mais quando alguém fala que sou indígena. Estamos aqui oferecendo nossa comida para um público diferente. Isso nos fortalece.”
Os ingredientes do Biatüwi
PIMENTA
O restaurante utiliza um pó com cerca de dez variedades de pimenta, como a jiquitaia
MATRINXÃ
De sabor suave, este peixe de escamas e tamanho médio é um dos mais apreciados da região amazônica.
JAPURÁ
Pequena fruta marrom, ácida e terrosa, é a matéria-prima de uma massa usada como tempero na mujeca, um caldo com peixe desfiado.
TUCUPI PRETO
Sumo da raiz da mandioca. Geralmente amarela, nesta variação a goma não é extraída. Caldo denso e amargo, apelidado de “shoyu da Amazônia”.
MANIWARA
Formiga vermelha de sabor suave e levemente apimentado consumida no Alto Rio Negro e no Baixo Amazonas
*Restaurante Biatüwi – Casa da Pimenta
Rua Bernardo Ramos, 97, Centro, Manaus, Amazonas, tel. (92) 98832-8408 das 11h30 às 15h (ter. a dom.) e das 19h às 21h (qui. a sáb.). Instagram: biatuwi_casa_de_quinhapira
fonte: Dia a dia online